Por Leonardo Paixão
Resumo
O presente artigo examina o capítulo “Obsessão” da obra A Loucura sob Novo Prisma (1897), de Adolfo Bezerra de Menezes, à luz de uma perspectiva integrativa entre ciência e espiritualidade. Publicada no final do século XIX, a obra apresenta uma visão inovadora para a época ao compreender determinados quadros de sofrimento psíquico como resultantes da influência persistente de espíritos desencarnados sobre encarnados, em sintonia com os princípios codificados por Allan Kardec. Partindo de sua formação médica e de seu compromisso espírita, Bezerra propõe que a etiologia da “loucura” pode incluir fatores espirituais, fluidos e morais, demandando, portanto, uma terapêutica que una diagnóstico clínico rigoroso, renovação moral e tratamento moral do paciente e do obsessor. A análise ressalta a relevância dessa abordagem frente aos desafios da psiquiatria contemporânea, que, apesar dos avanços neurocientíficos, ainda encontra limites na explicação e no tratamento de transtornos mentais complexos.
Palavras-chave: Obsessão espiritual; Espiritismo; Bezerra de Menezes; Saúde mental integral; Transtornos mentais; Terapia espírita.
1. Introdução: um olhar além do cérebro
No final do século XIX, a medicina mental encontrava-se em pleno processo de consolidação, mas ainda carecia de instrumentos diagnósticos e terapêuticos eficazes. Internações prolongadas, contenções físicas e métodos invasivos eram práticas comuns, muitas vezes incapazes de restaurar a saúde do paciente. Nesse cenário, Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900) — médico respeitado, político atuante e figura proeminente do Espiritismo brasileiro — lança A Loucura sob Novo Prisma (1897), propondo uma interpretação ampliada para a origem e o tratamento das doenças mentais.
O Capítulo III, dedicado à obsessão, rompe com a visão exclusivamente organicista da época ao incluir, no campo etiológico, a influência espiritual de desencarnados sobre encarnados. Baseado nos postulados kardecistas, Bezerra descreve a obsessão como processo de dominação moral e psíquica que se estabelece por afinidade vibratória e pela ação fluídica sobre o perispírito, afetando o corpo e a mente. Ao reconhecer a dimensão espiritual do ser humano, o autor não rejeita a medicina, mas defende uma terapêutica integral que combine cuidados físicos, reforma moral e recursos espirituais, antecipando, em mais de um século, a atual perspectiva biopsicossocial — com a diferença fundamental de incluir, de forma explícita, o componente espiritual.
2. A Obsessão: conceituação espírita-científica
Bezerra de Menezes fundamenta sua análise nos postulados da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, particularmente em O Livro dos Médiuns e O Evangelho Segundo o Espiritismo. Ele define a obsessão não como possessão demoníaca, mas como um processo de dominação moral e psíquica exercido por um espírito desencarnado sobre um encarnado. Esta dominação se estabelece através de uma sintonia vibratória negativa, facilitada por:
- Vícios morais do obsedado: O orgulho, o egoísmo, o ódio, a mágoa, a revolta, a avareza e os vícios materiais (especialmente a dependência química em álcool, destacado por Bezerra, o que podemos ampliar para a dependência química em álcool e outras drogas) criam uma “brecha” psíquica, atraindo espíritos afins e enfraquecendo as defesas perispirituais (KARDEC, 1861; 1864).
- Fluidos e perispírito: Bezerra, como Kardec, explica a mecânica da obsessão através da ação dos fluidos espirituais. O espírito obsessor, utilizando seu próprio perispírito (corpo semimaterial), envolve ou se liga ao perispírito do encarnado, influenciando diretamente seu sistema nervoso e, consequentemente, seus pensamentos, emoções e comportamento. Essa ação fluídica pode alterar o funcionamento cerebral, simulando ou agravando patologias orgânicas.
- Graus de obsessão: O autor diferencia a obsessão simples (influência persistente e incômoda, sem perda da autonomia), a fascinação (ilusão e cegueira moral induzidas pelo obsessor, onde a vítima defende seu algoz) e a subjugação (domínio quase completo da vontade e das ações, podendo levar a atos insanos e violentos). Este último grau frequentemente se confundia clinicamente com a loucura patológica.
3. A obsessão como etiologia da “loucura”
O cerne da contribuição de Bezerra no capítulo reside em identificar a obsessão como causa real de muitos casos diagnosticados como loucura incurável ou de origem desconhecida pela medicina de seu tempo (e, em parte, ainda hoje). Ele argumenta que: A ação fluídica constante do obsessor sobre o perispírito e, por reverberação, sobre o cérebro físico, pode produzir sintomas idênticos aos de psicoses, neuroses graves, depressões profundas, epilepsias, histerias e comportamentos violentos ou anti-sociais.
Muitos tratamentos convencionais falhavam porque atacavam apenas o efeito (a disfunção cerebral ou comportamental), ignorando a causa espiritual subjacente — a influência perniciosa do espírito obsessor e a vulnerabilidade moral do paciente.
A obsessão explica casos de resistência ao tratamento, recaídas inexplicáveis e mudanças súbitas de personalidade ou comportamento, especialmente quando associadas a eventos traumáticos ou a ambientes marcados por fortes conflitos morais.
4. Diagnóstico diferencial e terapêutica integral
Bezerra de Menezes não despreza a medicina. Pelo contrário, enfatiza a necessidade do diagnóstico diferencial: o médico deve primeiro esgotar todas as possibilidades de causas orgânicas (lesões cerebrais, infecções, intoxicações, etc.). Somente quando estas são descartadas ou se mostram insuficientes para explicar o quadro, deve-se considerar seriamente a hipótese obsessiva, analisando o histórico moral do paciente, seu ambiente e a natureza específica dos sintomas.
A proposta terapêutica apresentada é integral e multidimensional:
- Tratamento médico: indispensável para cuidar do corpo físico e do sistema nervoso debilitado.
- Tratamento moral/espiritual: o núcleo da cura, incluindo:
- Renovação moral: esforço consciente para superar vícios, cultivar virtudes (humildade, perdão, caridade, amor), modificar pensamentos e atitudes, fechando as portas à sintonia com o obsessor.
- Ação sobre o obsessor: por meio de prece, diálogo fraterno mediúnico (em ambientes sérios e doutrinados) e irradiação de fluidos salutares, esclarecendo o espírito perturbador e promovendo sua reconciliação moral.
- Ambiente saudável: manutenção de um lar e círculos sociais pacíficos e moralmente equilibrados.
- Recursos fluídicos: passes magnéticos e água magnetizada para reequilibrar o perispírito e restaurar as defesas naturais.
5. Atualidade e relevância da obra
Mais de um século após sua publicação, o capítulo sobre obsessão conserva impressionante atualidade:
- Limitações da psiquiatria contemporânea: apesar dos avanços neuroquímicos e farmacológicos, a etiologia de muitos transtornos mentais graves permanece obscura, e os tratamentos frequentemente não produzem cura definitiva.
- Visão integral do ser humano: a abordagem de Bezerra antecipa a visão biopsicossocial moderna, acrescentando a dimensão espiritual como fator essencial.
- Terapêutica holística: a ênfase na reforma íntima, no ambiente saudável e no tratamento moral ressoa com abordagens contemporâneas que valorizam mudanças de estilo de vida e suporte psicossocial.
- Compreensão das relações humanas: o conceito de sintonia vibratória explica padrões relacionais destrutivos e dinâmicas repetitivas de sofrimento, com possível origem espiritual.
6. Considerações finais
O Capítulo III de A Loucura sob Novo Prisma representa uma contribuição pioneira e corajosa para o entendimento das doenças mentais. Bezerra de Menezes, com sua dupla autoridade de médico e espírita, propõe um modelo etiológico e terapêutico que integra ciência e espiritualidade de forma racional. Ao identificar a obsessão espiritual como causa relevante de transtornos psíquicos, desafia o reducionismo materialista e oferece um caminho de cura pela autotransformação moral e ação fraterna — tanto para o obsediado quanto para o obsessor.
7. Referências
BEZERRA DE MENEZES, Adolfo. A Loucura sob Novo Prisma. 14. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2009.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 91. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro. 61. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2021.
KARDEC, Allan. Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos, ano 1864. São Paulo: Edicel.
PUGLIESI, Adilton. A Obsessão: Instalação e Cura. 6. ed. Salvador, BA: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2004.