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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Sobre o Livre - arbítrio

 Por Leonardo Paixão (*)

22/02/2023

"O homem tem o livre-arbitrio de seus atos?

 - Já que tem a liberdade de pensar, tem também a de agir. Sem o livre-arbítrio, o homem seria uma máquina" (O Livro dos Espíritos, questão 843).


Um dos Espíritos que participou da Codificação da Doutrina Espírita foi Santo Agostinho. Quando encarnado (século IV d. C.), Agostinho escreveu várias e extensas obras e foi o responsavel pelo desenvolvimento da Filosofia Cristã, carregando influências do neo-platonismo e do estoicismo.

Inteligência notável, foi chamado e ainda o é pela Igreja Católica de Princípe da Igreja.

Das obras várias que escreveu há uma, que não é extensa, tem cerca de 160 páginas e trata do assunto que estamos a falar aqui. É a obra Sobre o Livre-arbitrio que foi escrita na forma de Diálogos, tipo de texto muito comum em Filosofia.

Analisando o pensamento de Agostinho sobre o livre-arbitrio e o que disseram os Espíritos Superiores a Allan Kardec em O Livro dos Espíritos, percebemos claramente que os dois pensamentos são concordantes.

Vejamos uma parte do diálogo entre Agostinho e seu discípulo Evódio no livro II da obra:

"Por que Deus nos deu o livre-arbitrio, se com ele podemos pecar? (Esta é a pergunta que inicia o diálogo no livro II).

Evódio - (...) Com efeito, toda justiça procede de Deus, porque assim como é próprio da bondade fazer o bem aos estranhos, não é, em contrapartida, próprio da justiça puni-los. Daí se conclui claramente que nós lhe pertencemos,uma vez que não somente é pródigo em fazer-nos o bem, mas também justíssimo em punir-nos. Além de que, como já antes o disse e tu concordaste, todo bem procede de Deus. Disto pode-se facilmente entender que também o homem procede de Deus, posto que o homem mesmo, enquanto homem, é um bem, pois pode viver retamente sempre que quiser.

Agostinho - Evidentemente! Se isto é assim, já está resolvida a questão que propuseste. Se o homem em si é um certo bem e não pode agir retamente senão quando quer, conclui-se que necessariamente goza de livre-arbitrio, sem o qual não poderia agir retamente. E não porque o livre-arbitrio seja a origem do pecado, pois cremos que Deus nos deu a vontade livre não para pecar. Há, pois, uma razão suficiente para nos ter sido dada: sem ela, o homem não poderia viver retamente (grifo nosso). Assim, porque nos foi dada para este fim, podemos compreender o fato de Deus punir com justiça a todos aqueles que usam do livre-arbitrio para pecar.

Seria injusta esta punição se o livre-arbítrio nos fosse dado não apenas para vivermos com retidão, mas também para pecar. Com efeito, como poderia ser castigado aquele que usou de sua vontade livre para fazer aquilo para o qual lhe foi dada? Desta forma, quando Deus pune o pecador, o que te parece que lhe diz senão estas palavras: "Por que não usaste do livre-arbitrio para fazer aquilo para o qual te foi dado, ou seja, para fazer o bem?".

Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbitrio  da vontade, como poderia existir esse bem que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Porque não seria nem pecado nem boa ação o que se fizesse sem a vontade livre. E por isso mesmo, se o homem não estivesse dotado de vontade livre, seria injusto o castigo e injusto também o prêmio. Mas necessariamente deve haver justiça, seja em punir, seja em premiar, porque este é um dos bens que procedem de Deus. Logo, era preciso que Deus dotasse o homem de livte-arbítrio"(Grifos nossos).


Aqui uma pequena mostra do diálogo de Santo Agostinho com seu discípulo Evódio.

Nas palavras grifadas no texto acima é que temos a concordância do pensamento de Agostinho com o que expressam os Espíritos Superiores em O Livro dos Espíritos. Na questão 845 lemos: 

"As predisposições instintivas que o homem traz ao nascer não constituem obstáculos ao exercício do livre-arbitrio? 

- As predisposições instintivas são as do Espírito antes de encarnar. Conforme este seja mais ou menos adiantado, elas podem impeli-lo à prática de atos repreensíveis, e nisso será secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições. Não há, porém, arrastamento irresistível, desde que se tenha vontade de resistir. Lembrai-vos que querer é poder".

Na resposta dos Espíritos Superiores a Allan Kardec podemos ver que o livre-arbitrio é também colocado como possibilidade de o Espírito avançar na prática do bem e não se manter em suas tendências ou predisposições instintivas o que concorda com o exposto por Agostinho em seu livro Sobre o Livre-arbitrio.

Na conclusão de Santo Agostinho tanto quanto na dos Espíritos Superiores a Allan Kardec, o livre-arbitrio é uma faculdade do Espírito que lhe foi dada para que ele faça bom uso dela e não para o gozar dos prazeres da carne de forma irresponsável.

E se o livre-arbitrio fosse dado ao ser humano com o objetivo dele fazer tanto o bem quanto o mal, teríamos de colocar que há mal em Deus, porém, como não é assim, o livre-arbitrio é um bem que faz com que se possa querer agir retamente e é aí que está o mérito do Espírito.

Penso caber aqui, para encerrarmos esse texto, o pensamento  seguinte do filósofo existencialista e ateu Jean-Paul Sartre que disse uma verdade:

"Ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode" (O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica, Rio de Janeiro: Vozes, 1997).


(*) Leonardo Paixão  - Presidente e Fundador do Grupo Espírita Semeadores da Paz, Campos dos Goytacazes, RJ. Escritor, Orador.